Por Adilson Franco Nassaro (*)
RESUMO: identifica a dimensão das
expressões "abordagem policial" e "busca pessoal" e analisa
a evolução do instituto no universo jurídico, diante dos direitos humanos,
apresentando a noção de relatividade dos direitos individuais em face do
interesse público. Estuda o direito à intimidade frente à busca pessoal e a
devida harmonização que há de existir entre as ações do poder público e a
garantia dos direitos individuais. Defende o argumento de que a busca pessoal
constitui ato administrativo próprio de polícia, no exercício de missão
constitucional e, como ato discricionário, está sujeito a limites a fim de que
os direitos individuais sejam ao máximo respeitados e o agente não incorra na
prática de abuso de autoridade.
SUMÁRIO: 1. Considerações sobre
abordagem policial e busca pessoal. 2. Evolução do procedimento policial e o
reconhecimento dos direitos humanos. 3. Noção de relatividade dos direitos
individuais diante do interesse público. 4. A questão do respeito à intimidade.
5. Conclusões sobre possíveis casos de abuso de autoridade.
1.
Considerações sobre abordagem policial e busca
pessoal
No universo dos conhecimentos
técnico-policiais e também na linguagem jurídica comum, a expressão
"abordagem policial" é identificada normalmente pelo instituto da
busca pessoal. Tal interpretação generalizante é aceitável quando a análise do
procedimento se mantém no plano superficial. No entanto, com maior rigor
técnico e na área da doutrina aplicada à prática policial que evolui para o
campo atual das "Ciências Policiais", dispõe-se que a abordagem
policial envolve momentos distintos, reconhecíveis de um modo geral como: ordem
de parada; busca pessoal propriamente dita; identificação (com consultas); e
eventual condução do revistado, no caso de constatação de prática de infração
penal.
Em razão da dinâmica própria do
policiamento preventivo, admite-se a existência de abordagem (note-se, sem o
complemento), circunstancialmente voltada à identificação, ou mesmo à simples
transmissão de um alerta, de uma recomendação ou orientação ao abordado,
portanto, sem realização de busca pessoal. Ainda, a palavra
"abordagem", muitas vezes é utilizada para descrever apenas a ação
inicial de aproximação e ordem de parada em vista de veículo ou pessoa em
movimento, para qualquer que seja a sua finalidade, em razão do próprio
significado geral da palavra "abordar" constante em dicionários de
língua portuguesa, como: "chegar à beira ou borda de; acometer;
achegar-se, aproximar-se". O que define se essas "abordagens"
são propriamente "policiais" é o objetivo que se pretende alcançar
com a ação e, naturalmente, a condição de serem realizadas por agente policial.
Propõe-se, por esse motivo, o uso uniforme da expressão "abordagem
policial", em amplo sentido envolvendo as três ou quatro etapas descritas
(ordem de parada, busca pessoal, identificação e eventual condução) e somente
em estrito sentido como sinônimo de busca pessoal, que corresponde exatamente
ao núcleo do procedimento, a parte mais relevante da intervenção policial. Essa
postura interpretativa se harmoniza com a análise legal da ação, levando em
conta a previsão do instituto no ordenamento jurídico - nomeado busca pessoal -
e a sua fundamentação na missão constitucional do agente público ou no
cumprimento de norma processual penal, ou mesmo na soma dos dois suportes
legais.
De fato, o Código de Processo Penal
brasileiro, Decreto-lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941, estabelece duas
modalidades de "busca" no seu art. 240, quais sejam, a domiciliar e a
pessoal. Por tratar-se de ação que inevitavelmente impõe restrição de direitos
individuais em qualquer das duas espécies, somente deve ser concretizada em
situação de razoável equilíbrio entre o interesse da ordem pública e os
direitos e garantias individuais, ambos de fundamento constitucional.
Portanto, para realização da busca
pessoal impõe-se a preservação, na medida do possível e do necessário, das
garantias de prescrição genérica, identificadas pelo respeito à intimidade, à
vida privada e à integridade física e moral do indivíduo, estabelecidas em pelo
menos quatro dos incisos do mesmo artigo (art. 5º), da CF, quais sejam:
Inciso III: ninguém será submetido a
tortura nem a tratamento desumano
ou degradante;
Inciso X: são invioláveis a intimidade,
a vida privada, a honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Inciso XV: é livre a locomoção no
território nacional em tempo de paz...;
Inciso XLIX: é assegurado aos presos o
respeito à integridade física e moral.
Já indicamos, em estudo anterior, que a
busca pessoal, ou "revista" que é seu sinônimo, pode ser classificada
como "preventiva" ou "processual", de acordo com o momento
em que é realizada, bem como a sua finalidade, identificando-se a natureza
jurídica do ato. Antes da efetiva constatação da prática delituosa, ela é
realizada por iniciativa de autoridade policial competente e constitui ato
legitimado pelo exercício do poder de polícia, na esfera de atuação da
Administração Pública, com objetivo preventivo (busca pessoal preventiva).
Realizada após a prática, ou em seguida à constatação da prática criminosa,
ainda que como seqüência da busca preventiva, tenciona normalmente atender ao
interesse processual (busca pessoal processual), para a obtenção de
objetos necessários ou relevantes à prova de infração, ou mesmo à defesa do réu
(alínea e, do parágrafo 1º, do art. 240 do CPP). [01]
Durante a abordagem policial comum
ocorre a restrição abrupta da liberdade de locomoção, que evidentemente não se
amolda à conduta de cárcere privado, em que pese privação momentânea do
"direito de ir e vir". Também não há tipo penal específico para a
proteção da intimidade (no aspecto físico e pessoal) e igualmente para a
intangibilidade corporal, que são objetos jurídicos de sentido diverso da
liberdade sexual. Na caracterização de conduta exorbitante, ou seja, com
excesso, utiliza-se geralmente a descrição de abuso de autoridade de agente
público no exercício da função (Lei 4.898/65).
Enfim, existem diversos níveis de busca
pessoal, verificados de modo proporcional ao fator de sua motivação em cada
hipótese, decorrendo, obviamente, maior ou menor nível de necessária restrição
de direitos individuais; todavia, podem ser simplificados em duas espécies, sob
a seguinte classificação: busca pessoal preliminar (ou superficial) e busca
pessoal minuciosa (ou íntima). A percepção do nível adequado está vinculada ao
momento da realização da busca, diante das circunstâncias da situação
específica, bem como a sua finalidade, observado o grau de suspeita na
avaliação do agente com competência legal na área de polícia de segurança, no
exercício do chamado poder de polícia que lhe é próprio.
Daí a importância de se verificar quais
os parâmetros que devem nortear a conduta do agente responsável pela busca
pessoal, na prática de ato discricionário característico do procedimento da
abordagem policial, e no permanente esforço de harmonização da intervenção
restritiva com o conjunto dos direitos e garantias individuais consagrados na
Constituição Federal, diante do caso concreto.
A análise histórica do desenvolvimento
da ação de busca e o reconhecimento dos direitos individuais, também auxilia na
compreensão da imprescindibilidade da intervenção policial, no campo da
prevenção, para a garantia da segurança pública.
2. Evolução do procedimento policial e
do reconhecimento dos direitos humanos
O primeiro relato da realização de uma
legítima busca pessoal, durante uma abordagem policial, encontra-se no Livro do
Gênesis, parte III, "A História de José", da Bíblia Sagrada.
José, que ocupava um dos mais altos
postos da hierarquia do Egito e ainda não havia revelado sua identidade aos
irmãos que vieram buscar trigo, determinou ao oficial intendente que no
deslocamento da volta procedesse à busca em seus irmãos, particularmente nos
seus sacos de viagem. José sabia que seria encontrada no saco de viagem
transportado por Benjamim - o mais novo - uma taça de prata, pois a havia ali
ocultado, a fim de observar as reações dos irmãos depois que o valioso objeto fosse
descoberto durante a busca.
Ao serem abordados, os irmãos negaram a
prática de furto e não ofereceram resistência à revista. O intendente, então,
lhes proferiu algumas palavras e procedeu à busca, conforme segue:
‘Seja como dissestes! Aquele com quem for
encontrada a taça será meu escravo. Vós outros sereis livres’. E,
imediatamente, pôs cada um o seu saco por terra e o abriu. O intendente
revistou-os começando pelo mais velho e acabando pelo mais novo; e a taça foi
encontrada no saco de Benjamim" (Livro do Gênesis, parte III, Capítulo 44,
versículos 10-12). [02]
Trata-se de um raro relato, pois, desde
a Antigüidade, a busca pessoal acompanhava usualmente o procedimento da busca
domiciliar como sua conseqüência, em razão de que não faria sentido revistar
tão-somente uma pessoa e, não se encontrando o que era procurado, desistir da
diligência. Isso porque a ocultação do objeto buscado já poderia ter sido
realizada no interior da casa daquele sobre quem recaia a suspeita da subtração
mediante furto, por exemplo.
No caso do referido texto bíblico, como
situação excepcional, havia a certeza de que o objeto procurado - a taça - não
estaria na casa dos irmãos de José, pois, naquela ocasião, eles se encontravam
em viagem para trazer trigo do Egito e longe de seus domicílios, motivo pelo
qual foi realizada exclusivamente a busca pessoal.
A busca domiciliar era o procedimento
utilizado, em regra, para que fosse verificado se alguém ocultava consigo o que
se suspeitava ter sido indevidamente retirado de outra pessoa. Por sinal, não é
exagero afirmar que no antigo direito romano dispensava-se maior proteção à
casa do que ao próprio corpo do indivíduo. A casa era o símbolo da identidade
da pessoa, do grupo familiar liderado pela figura do paterfamilias e
também era o ambiente do culto sagrado dos antepassados, dos mortos que
recebiam na cerimônia do "fogo sagrado" - chamado "lar" - a
oferenda doméstica como garantia de sua memória e do seu descanso eterno [03].
Em contraposição a essa sacralização do
ambiente do lar - entenda-se interior da casa - e o respeito à propriedade que
identificava o grupo familiar, o corpo do cidadão, em sua individualidade, não
era considerado de igual importância, tanto que no antigo direito romano o
corpo do devedor respondia pela sua dívida. Tal situação ilustra bem a condição
de menor respeito à intimidade representada pelo corpo em relação a casa e a
propriedade familiar, como explica Fustel de Coulanges:
A lei das Doze Tábuas não poupa,
seguramente, o devedor, mas recusa, no entanto, que a sua propriedade seja
confiscada em proveito do credor. O corpo do homem responde pela dívida, não a
sua terra, porque esta se prende, inseparável, à família. Será mais fácil
colocar o homem na servidão do que tirar-lhe um direito de propriedade pertencente
mais à família do que a ele próprio; o devedor está nas mãos do seu credor; a
sua terra, sob qualquer forma, acompanha-o na escravidão. [04]
Também no direito romano cabia ao
lesado a iniciativa para a apuração e punição dos delitos privados, incluindo-se
as subtrações indevidas. Nesse contexto, a busca domiciliar foi praticamente
regulamentada na Lei das XII Tábuas, quando estabeleceu que a diligência devia
ser realizada pelo interessado, em ato solene, ingressando nu na casa de quem
recaía a suspeita, apenas protegido por um cinto, em respeito ao pudor alheio,
e portando nas mãos um prato para nele colocar o objeto encontrado e também
para demonstrar que em suas mãos nada mais trazia (Tábua VIII, "Dos
Delitos", Número XV). [05]
A busca pessoal seria então realizada
como conseqüência do ato solene de entrada na casa, respeitado o ritual que a
condicionava, no caso dos delitos privados, já que o corpo recebia menor
proteção que a casa, conforme se demonstrou, ou ainda mediante consentimento
daquele sobre quem pesava a suspeita. Quanto aos delitos que lesavam a
coletividade, perseguidos pelo poder público - delitos públicos -, dava-se a
busca tanto na esfera domiciliar quanto pessoal em conjunto e, de modo geral,
por imposição de autoridade constituída.
Quanto à busca pessoal preventiva para
acesso a ambiente restrito, existe relato, também da Antiguidade, que demonstra
a associação do procedimento a algo desagradável e ainda assim imposto, no caso
para a entrada no palácio de um rei, conforme o discurso Panegírico de
Isócrates, publicado na Grécia em 380 a.C. para ser divulgado no período das
Olimpíadas, em Olímpia precisamente, fazendo elogio aos helenos em relação aos
bárbaros da Ásia, povos governados por persas, "em que apenas um tem todo
o poder":
Estes ‘mergulham’ no luxo como
consequência de sua riqueza, têm a alma humilhada e assombrada pela monarquia,
se deixam revistar à porta do palácio, se prostram diante do rei, sofrem todo
tipo de humilhação adorando um mortal que chamam de deus, mas se preocupando
menos com sua divindade do que com as honras (...) [06]
Retornando à questão da busca
processual, já na Idade Média com a predominância do processo penal canônico,
verificou-se uma transformação do sistema acusatório para o inquisitivo e, a
partir desse momento, deixaram de ser observadas quaisquer prerrogativas
individuais. Como ensina Tourinho Filho:
Até o século XII, o processo era de
tipo acusatório: não havia juízo sem acusação. O acusador devia apresentar aos
Bispos, Arcebispos ou Oficiais encarregados de exercerem a função jurisdicional
a acusação por escrito e oferecer as respectivas provas. Punia-se a calúnia.
Não se podia processar o acusado ausente. Do século XIII em diante,
desprezou-se o sistema acusatório, estabelecendo-se o ‘inquisitivo’. Muito
embora Inocêncio III houvesse consagrado o princípio de que Tribus
modis processi possit: per accusationem, per denuntiationem et per
inquisitionem, o certo é que somente as denúncias anônimas e a inquisição
se generalizaram, culminando o processo inquisitivo, per inquisitionem,
em tornar-se comum. [07]
Ainda que partindo de
"denúncia" anônima, a inquisição apresentava uma implacável busca à
condenação do chamado "herege", sem o mínimo respeito à integridade
física e psíquica do "acusado", pois se utilizava inclusive do expediente
da tortura para obtenção da confissão. No curso dessa "busca de
condenação", a busca domiciliar e a pessoal não eram condicionadas à
qualquer justificativa a partir da conclusão da rápida instrução preparatória,
mesmo sem a presença do "acusado", como indica José Geraldo da Silva:
O processo inquisitório surgiu com o
Concílio de Latrão, em 1215, e possibilitava o procedimento de ofício, sem
necessidade de prévia acusação, pública ou privada. O termo inquisição vem
do latim inquirere, inquirir. Compõe-se de duas outras palavras latinas: in (em),
e quaero (buscar). Portanto, a inquisição é uma busca,
uma investigação (...) Se a instrução preparatória fornecia a
prova do delito, os inquisidores ordenavam a prisão do acusado, ao qual já não
protegiam nem privilégios nem asilo. Depois de preso, ninguém mais se
comunicava com ele; procedia-se à visita do seu domicílio e fazia-se o
seqüestro de seus bens. [08]
Exemplo desse proceder foi descrito
pelo historiador Carlo Ginzburg, na pesquisa que reconstituiu o processo a que
respondeu o moleiro Domenico Scandella, conhecido por Menocchio, de Montereale,
a partir de denúncia ao Santo Ofício, em 1583, depois de ter pronunciado
palavras consideradas "heréticas e totalmente ímpias", em região
identificada ao norte da atual Itália: "No momento da prisão, o
vigário-geral mandou que revistassem sua casa". Já ao final de um segundo
"processo", em torno de 1601, antes da execução de sua morte na
fogueira, "todos os seus livros e ‘escritos’ foram confiscados". [09]
Superada essa difícil fase da história,
iniciou-se a Idade Moderna caracterizada pelo absolutismo que foi o sistema de
governo da maioria dos Estados europeus entre os séculos XVII e XVIII, quando o
poder era exercido de modo centralizado pelo monarca e sustentado por uma
burguesia emergente. E foi somente no século XVIII que surgiu um período de
luzes, com um movimento de defesa do predomínio da razão sobre a fé,
estabelecendo o progresso como destino da humanidade: o Iluminismo.
Representando a visão intelectual da
época, essa corrente alcançou grande repercussão na França, onde enfim se opõe
às injustiças sociais, aos privilégios da aristocracia decadente e também à
intolerância religiosa. Também, abriu caminho para a Revolução Francesa que
veio a se inflamar em 1789 e marcou o início da Idade Contemporânea,
oferecendo-lhe o lema que sintetizou a mudança então clamada: "Liberdade,
Igualdade e Fraternidade".
Um dos principais idealizadores desse
pensamento foi Jean-Jacques Rousseau, que defendeu o respeito à igualdade, no
exercício dos direitos individuais, reconhecendo a existência de um verdadeiro
"contrato social" que estabelece que cada cidadão abre mão de uma
pequena parcela da sua liberdade individual, a fim de que o Estado,
representando a vontade geral em seus atos de controle, viabilize a convivência
pacífica, com base no exercício da liberdade civil e respeito à propriedade. Em
sua obra máxima, de 1762, "O Contrato Social", oferece lições
precisas desse novo pensamento:
Limitemos tudo isso a termos fáceis de
comparar. O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um
direito ilimitado a tudo o que lhe diz respeito e pode alcançar. O que ele
ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui... De qualquer
modo que remontemos ao começo, chegaremos sempre à mesma conclusão, a saber:
que o pacto social estabelece entre os cidadãos tal igualdade, que todos se
obrigam sob as mesmas condições e devem gozar dos mesmos direitos. Assim, pela
natureza do pacto, todo ato de soberania, isto é, todo ato autêntico da vontade
geral, obriga ou favorece igualmente a todos os cidadãos. [10]
Influenciado pelos escritores dessa
época, Cesare Beccaria, lança em 1764 a sua obra: "Dos delitos e das
penas", proclamando o princípio da igualdade perante a lei, com enfoque na
norma penal. O autor estabelece limites entre a justiça humana e a justiça
divina, ou seja, entre o pecado e o crime; condena a reivindicação do direito
de vingança, com o fortalecimento do jus puniendi, baseado na sua
utilidade social, além da devida proporcionalidade entre o delito e a sanção e
tantas outras idéias que vieram a fortalecer o sentido de justiça aplicada ao
indivíduo como sujeito de direitos inalienáveis, inserido no contexto de uma
sociedade organizada e equilibrada mediante o respeito às regras de convivência
derivadas do contrato social.
Beccaria tece críticas ao sistema que
não acolhia a pretensão ou garantia de respeito ao acusado ou suspeito,
indagando:
Quem, ao ler a história, não se
horripila diante dos bárbaros e inúteis tormentos, friamente criados e
executados, por homens que se diziam sábios? Quem não estremecerá, até em sua
célula mais sensível, ao ver milhares de infelizes que a miséria provocada ou
tolerada por leis que sempre favoreceram a minoria e prejudicaram a maioria,
forçou a desesperado regresso ao primitivo estado da natureza, ou acusados de
delitos impossíveis, criados pela tímida ignorância, ou réus julgados culpados
apenas pela fidelidade aos próprios princípios, esses infelizes acabam
mutilados por lentas torturas e premeditadas formalidades, oriundas de homens
dotados dos mesmos sentimentos e, por conseguinte, das mesmas paixões, em
alegre espetáculo para a fanática multidão? [11]
Verifica-se, a partir dessa fase, uma
acentuada evolução quanto ao reconhecimento dos direitos e garantias
individuais, mediante o respeito ao ser individual e o desenvolvimento de um
novo conceito: o da inviolabilidade pessoal, com base no aspecto físico, que
diz respeito à intangibilidade corporal e também no aspecto moral, quanto à
preservação da intimidade e da vida privada.
A noção do que sejam os "direitos
humanos" surge inicialmente permeada pela idéia de direito natural, ou
seja, os que podem ser deduzidos da própria natureza do ser humano. Nesse
sentido, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,
relaciona como direitos naturais e inalienáveis, dentre outros, a liberdade, a
propriedade, a resistência à opressão e a segurança. Importante notar que,
dentre os dezessete artigos dessa histórica Declaração votada e aprovada no mês
seguinte à Tomada da Bastilha, respectivamente nos dias 20 e 26 de agosto, e
tendo por redatores principais Mirabeau e Sieyès, se encontra uma previsão
muito especial para a sustentação da garantia dos direitos do homem e do
cidadão: a necessidade da criação de uma chamada "força pública" (force
publique), que foi incluída em seu artigo 12. [12]
Ainda, a oposição dos direitos
individuais em face da atuação do Estado, até então absoluto, como fator de sua
limitação é observada por Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, ao tratar da
evolução dos instrumentos internacionais de proteção aos indivíduos:
Na era moderna, grande parte das normas
contidas nas Declarações de Direitos dizem exatamente com os limites da atuação
do Estado na invasão da esfera de liberdade dos indivíduos. E essa invasão se
torna mais sensível quando o Estado exerce seu poder-dever de repressão a
condutas que atingem a comunidade. [13]
Segue-se, então, a internacionalização
das normas de proteção aos direitos individuais em oposição ao poder do Estado,
em curso de evolução que se interrompeu a partir do início da I Grande Guerra
Mundial e foi retomado em 1919, com o Tratado de Versalhes que estabeleceu a
Liga das Nações e a Corte Permanente de Justiça, como registra a mesma autora:
Não há dúvidas de que o Tratado de
Versalhes, ao criar o primeiro corpo de organizações internacionais permanentes
para regulamentação e controle das relações entre os Estados, e entre o Estados
e os indivíduos, em tempo de paz, pode ser considerado um grande passo na
internacionalização dos direitos humanos. [14]
Após a segunda Grande Guerra,
iniciou-se um processo de submissão das nações a compromissos de proteção e
garantia dos direitos da pessoa, como decorrência do fim do conflito mundial.
Surge, inicialmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que
traz como princípios gerais a liberdade, a igualdade, a não discriminação e a
fraternidade, além de prescrições sobre os direitos e liberdades de ordem
pessoal, sobre direitos do indivíduo nas suas relações sociais, dentre outras.
Essa Declaração motivou a elaboração de
outros instrumentos internacionais aos quais se vincularam nações não
integrantes das Nações Unidas, hoje de grande influência no ordenamento
jurídico dos países a eles submetidos.
Finalizando essa
breve digressão, grande parte dos ordenamentos jurídicos dos países da
comunidade internacional identifica a separação da busca pessoal em relação à
busca domiciliar, reconhecendo a intervenção policial como de iniciativa
própria, na condição de medida necessária, sempre em equilíbrio com os direitos
e garantias individuais. Esses direitos inalienáveis encontram-se estabelecidos
na Constituição Federal, no caso do Brasil e de vários outros países, como
conseqüência da evolução histórica de sua própria organização social e a
recepção de normas que devem ser consideradas pelo seu valor universal.
Verifica-se, na mesma trilha, o posicionamento do Estado como exclusivo
detentor do jus puniendi, o reconhecimento da igualdade de todos
perante a lei, a atuação legítima da Força Pública e, também, o desenvolvimento
da noção de inviolabilidade pessoal ao longo dos tempos, observada a sua
relatividade.
3. Noção de
relatividade dos direitos individuais diante do interesse público
Tal como os demais instrumentos
internacionais de proteção aos direitos individuais, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos não prescreve direitos absolutos. Enquanto, por exemplo, em
seu artigo V, declara que "ninguém será submetido a tortura, nem a
tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante", o item 2, do seu
artigo XXIX estabelece que:
No exercício de seus direitos e
liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas as limitações determinadas pela
lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito
dos direitos e liberdades de outrem, e de satisfazer às justas exigências da
moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. [15]
A Constituição Federal de 1988, no
Brasil, foi fortemente influenciada pelos instrumentos internacionais de
proteção aos direitos individuais, particularmente no seu art. 5º, em que se
verificam garantias da inviolabilidade domiciliar (inciso XI) e da
inviolabilidade pessoal, impondo o devido respeito à intimidade, à vida privada
e à integridade física e moral do indivíduo (incisos III, X e XLIX).
Todavia, no exercício de missão também
de dimensão constitucional, e no âmbito de suas atribuições, o policial pratica
atos que naturalmente restringem liberdades individuais, na esfera
administrativa de ação do Poder Público, particularmente no caso da comum
abordagem policial com busca pessoal, exercendo o poder de polícia com requisitos
e limitações próprias[16]. Nesse ponto, é importante lembrar a lição
de Álvaro Lazzarini:
O ato de polícia administrativa ou ato
de polícia preventiva, como exteriorização do Poder de Polícia da Administração
Pública, tem a mesma infra-estrutura de qualquer outro ato administrativo. Nele
se encerra a manifestação do "Poder de Polícia" e, assim, para ser
válido, o ato de polícia deve partir de órgão competente, tendo em vista a
realização do bem comum, observando a forma que lhe for peculiar e que poderá
ser a escrita, verbal ou simbólica, tudo diante de uma situação de fato e de
direito que diga respeito à atividade policiada, devendo, finalmente, ser
lícito o seu objeto. Em outras palavras, como qualquer outro ato
administrativo, o de polícia deve conter os requisitos da competência,
finalidade, forma, motivo e objeto.[17]
A noção de limitação de direito,
interesse ou liberdade é integrante exatamente do conceito de "poder de
polícia", apresentado na sua forma genérica, no art. 78 do Código
Tributário Nacional, nos seguintes termos:
Considera-se poder de polícia atividade
da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou
liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de
interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à
disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas
dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade
pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. [18]
De acordo com Hely Lopes Meirelles, o
ato de polícia possui três atributos básicos: discricionariedade,
auto-executoriedade e coercibilidade [19], ou seja,
caracteriza-se pela livre escolha da oportunidade e da conveniência do
exercício do poder de polícia, além dos meios necessários à sua consecução,
pela execução direta e imediata da decisão, sem necessidade de participação do
Poder Judiciário, bem como, pela imposição de medidas de modo coativo.
Para que o policial não pratique ato
arbitrário, que consiste em posicionamento antagônico à prática de ato discricionário,
deve ter a noção exata dos contornos legais da discricionariedade. Ainda que a
Administração disponha de certa margem de discricionariedade no seu exercício,
os fins, a competência do agente, o procedimento (sua forma) e também os
motivos e o objeto são limites impostos ao ato de polícia, conforme adverte
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em elucidativa exposição:
Quanto aos fins, o poder de polícia só
deve ser exercido para atender o interesse público. Se o seu fundamento é
precisamente o princípio da predominância do direito público sobre o
particular, o exercício desse poder perderá a sua justificativa quando
utilizado para beneficiar ou prejudicar pessoas determinadas; a autoridade que
se afastar da finalidade pública incidirá em desvio de poder e acarretará a
nulidade do ato com todas as conseqüências nas esferas civil, penal e
administrativa. A competência e o procedimento devem observar as normas legais
pertinentes. Quanto ao objeto, ou seja, quanto ao meio de ação, a autoridade
sofre limitações, mesmo quando a lei lhe dê várias alternativas possíveis. Tem
aqui aplicação um princípio de direito administrativo, a saber, o da
proporcionalidade dos meios aos fins; isto equivale a dizer que o poder de
polícia não deve ir além do necessário para a satisfação do interesse público
que visa proteger; a sua finalidade não é destruir os direitos individuais,
mas, ao contrário, assegurar o seu exercício, condicionando-o ao bem-estar
social; só poderá reduzi-los quando em conflito com interesses maiores da
coletividade e na medida estritamente necessária à consecução dos fins
estatais. [20]
Portanto, a busca pessoal e a veicular,
como seu desdobramento, constitui ato administrativo, enquanto ato próprio de
polícia. No campo da polícia preventiva é fundamentada na competência
constitucional para iniciativas que garantam a preservação da ordem pública.
Também o policial competente pode - e deve por questão lógica - realizá-la em
face do autor de um delito, ou durante sua prisão em flagrante, no contexto da
repressão imediata, nesse caso caracterizada como busca pessoal processual.
Ainda, tratando-se de busca preventiva
individual, ou seja, aquela realizada antes da constatação da prática de
infração penal e mediante seleção de quem será revistado, existe o fundamento
do art. 244 do Código de Processo Penal, para a ação policial com base em
"fundada suspeita", sem mandado judicial [21].
Mesmo considerando que as garantias
individuais representam também limitação ao poder do Estado, o que é fundamento
histórico das Constituições, pode-se concluir que não são elas (as garantias
individuais) absolutas quando se trata da realização da busca pessoal e de
outros procedimentos imprescindíveis para a ordem pública e o bem-estar social,
previstos em lei. Deve ocorrer, naturalmente, que alguns direitos individuais
cedam espaço ao interesse maior da sociedade, no limite do que seja necessário
e razoável à realização do bem comum.
Trata-se, na realidade, de equilibrar e
garantir direitos individuais de mesmo nível e dignidade constitucional, no
caso, a inviolabilidade domiciliar e a pessoal e a segurança devida a todo
cidadão (caput do art. 5º, da CF). É este o sentido do artigo
XXVIII, da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948,
quando estabelece que: "Os direitos do homem estão limitados pelos
direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas exigências do
bem-estar geral e do desenvolvimento democrático". [22]
4. A questão do
respeito à intimidade
A invasão da intimidade e da vida
particular, que também é um dos aspectos da intimidade em sentido amplo, traz
prejuízo moral objetivo (como o indivíduo é visto por seus pares) e moral
subjetivo (como o próprio indivíduo se vê, no convívio social).
A intimidade foi objeto de análise por
Paulo José da Costa Júnior, que defendeu a necessidade de tutela penal desse
direito individual garantido pelo inciso X, do art. 5º, da CF,
conforme registrou em sua obra "O Direito de Estar Só". O penalista
apresentou o seguinte conceito para o que denominou intimidade exterior:
é aquela de natureza psíquica. O homem
a estabelece no burburinho da multidão. Ensimesmando-se em pleno tumulto
coletivo. Decretando-se alheio, impenetrável às solicitações dos que o rodeiam.
Presente e ausente. Rodeado e só. [23]
Nessa linha de raciocínio, a abordagem
policial invadiria primeiramente a intimidade exterior do indivíduo que, apesar
de se encontrar em público, não se vê normalmente obrigado a travar relações
interpessoais além do que lhe seja necessário ou oportuno. Quem nunca foi
abordado em público, não necessariamente pela polícia, e não se sentiu invadido
em sua intimidade ou privacidade?
Identificando as esferas individual e
privada, relacionadas à intimidade, ainda o autor observa que:
Em correspondência com sua natural
divisão em ser individual e ser social, o homem vive como personalidade em
esferas diversas: numa esfera individual e noutra esfera privada.
Assim, o homem, como pessoa, procura
satisfazer dois interesses fundamentais: enquanto indivíduo, o interesse por
uma livre existência; enquanto co-partícipe do consórcio humano, o interesse
por um livre desenvolvimento na vida de relação.
Os direitos que se destinam à proteção
da ‘esfera individual’ servem à proteção da personalidade, dentro da vida
pública. Na proteção da ‘vida privada’, ao contrário, cogita-se da
inviolabilidade da personalidade dentro do seu retiro necessário ao seu
desenvolvimento e evolução, em seu mundo particular, à margem da vida exterior.
Estabelece-se, dessarte, a diferença
entre a ‘esfera individual’ (proteção à honra) e a ‘esfera privada’ (proteção
contra a indiscrição). [24]
Por esse entendimento, a violabilidade
pessoal verificada na busca pessoal pode atingir a esfera individual e a esfera
privada daquele que é submetido à revista.
A garantia constitucional prevista no
inciso X, do art. 5º, da CF, estabeleceu proteção à "intimidade" e à
"vida privada". Entendemos que a primeira é dirigida às informações
pessoais que cada um pode resguardar como expressão da sua personalidade,
inclusive quanto à revelação da imagem do próprio corpo e da sua tangibilidade
(física); já a segunda, a inviolabilidade da vida privada, defende a reserva
dos aspectos íntimos da vida particular, que pressupõe o envolvimento restrito
de algumas pessoas, primeiramente quanto ao seu conhecimento e, em segundo
momento, contra a indiscrição, ou seja, a divulgação dessas informações. Ocorre
que algumas informações dizem respeito tanto à intimidade quanto à vida privada
(em sentido estrito) do indivíduo, não sendo possível, por vezes, dissociar
esses dois enfoques, razão pela qual é verificada a tendência de utilização
comum da expressão: "intimidade e privacidade", tendo a privacidade,
nesse caso, o mesmo sentido de "vida privada".
Portanto, a busca pessoal restringe o
direito de intimidade e também da vida privada, em diversos níveis, além da
honra do revistado, como aspectos pessoais de complexa análise para efeito de
mensuração. Caso o procedimento policial seja fotografado, filmado ou
registrado em imagem por qualquer outro meio, sem a autorização do revistado,
de modo a possibilitar a sua identificação, ocorrerá, também, violação da
imagem dessa pessoa, dependendo do uso a que for destinado esse registro, ainda
na interpretação do mesmo dispositivo constitucional.
Não significa, absolutamente,
impossibilidade legal de se proceder a busca pessoal. Assim como se dá com as
demais garantias constitucionais, o que ocorre é uma harmonização entre os
direitos individuais e o interesse geral, representado pelo almejado bem comum,
lembrando que todos têm também direito à segurança.
Nessa mesma avaliação e linha de
raciocínio, quanto à necessária conciliação dos direitos estabelecidos na
Constituição, registra-se a preciosa conclusão de José Joaquim Gomes Canotilho
e Vital Moreira, nos seguintes termos:
Os direitos fundamentais só podem ser
restringidos quando tal se torne indispensável, e no mínimo
necessário, para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos.
No fundo, a problemática da restrição
dos direitos fundamentais supõe sempre um conflito positivo de
normas constitucionais, a saber entre um norma consagradora de certo
direito fundamental e outra norma consagradora de outro direito ou de diferente
interesse constitucional. A regra de solução do conflito é a da máxima
observância dos direitos fundamentais envolvidos e da sua mínima
restrição compatível com a salvaguarda adequada do outro direito
fundamental ou outro interesse constitucional em causa.
Por conseguinte, a restrição de
direitos fundamentais implica necessariamente uma relação de
conciliação com outros direitos ou interesses constitucionais e exige
necessariamente uma tarefa de ponderação ou de concordância prática dos
direitos ou interesses em conflito. Não pode falar-se em restrição de um
determinado direito fundamental em abstracto, fora da sua relação com um
concreto direito fundamental ou interesse constitucional diverso. [25]
5. Conclusões sobre
possíveis casos de abuso de autoridade.
Respeitando o princípio da legalidade,
o policial desenvolve ações próprias para alcançar o fim da preservação da
ordem pública, podendo optar entre intervenções e soluções (decisões)
diferentes, posto que o ato de polícia possui como atributo a
discricionariedade.
Deve observar, no entanto, os limites
do ato discricionário que são: os fins a que se destina o ato, a competência, o
procedimento (sua forma) e também os motivos e o objeto. Ato arbitrário
representa o contrário do sentido de ato discricionário, pela não observância
dessas limitações.
As buscas pessoais devem ser
realizadas, ainda que causem eventuais prejuízos de caráter individual, sempre
sob o prisma da razoabilidade. Exigível, para tanto, que a restrição de direitos
individuais se dê na mínima medida possível, ou seja, no limite do que possa
ser considerado necessário e razoável, para alcançar o interesse público.
Para a realização de buscas pessoais, o
policial militar possui hoje como instrumento o "Procedimento Operacional
Padrão" (POP), amplamente difundido, que prevê a seqüência de ações, a
fundamentação legal da intervenção e preciosas orientações que o auxiliam a
agir dentro dos limites do ato policial discricionário. Esse padrão
institucional de procedimentos, além de garantir uma possível uniformidade de
ações, também representa segurança ao agente, como garantia de que ele estará
alinhado à doutrina operacional da Instituição.
As próprias limitações impostas pela
observância dos direitos e garantias constitucionais encontram-se especificadas
no art. 3º e 4º da Lei 4.898/65 ("Lei de Abuso de Autoridade").
Consistem em verdadeiros freios à atuação policial, aplicáveis ao procedimento
de busca, sob pena de incorrer o agente em crime de abuso de autoridade, de competência
da Justiça Comum (estadual).
De acordo com Fábio Bellote Gomes:
"Assim, ocorre o abuso de poder ou abuso de autoridade quando o agente
público, embora competente, ao executar ato administrativo excede os limites de
suas atribuições legais na prática do ato". [26]
Quanto à busca veicular, que é
considerada desdobramento da busca pessoal, observa-se que a doutrina e a
jurisprudência reconhecem a sua legitimidade como ação preventiva da Polícias
Militares, a partir de abordagens em veículos de transporte individual ou
coletivo, justificável pelo desempenho da missão constitucional de preservação
da ordem pública, razão pela qual o abuso de autoridade constitui exceção e não
a regra nesses casos:
ABUSO DE AUTORIDADE. Vistoria em
veículos. Apreensão de mercadoria descaminhada. Não constitui atentado à
liberdade de locomoção e nem ofensa à honra e ao patrimônio de pessoa,
definidas como crimes de abuso de autoridade, a ação de policiais destacados
por seus superiores para, em barreiras em rodovias, efetuarem vistorias em veículos,
de transporte individual ou coletivo, em função de prevenção e repressão de
delitos, até por exercida no estrito cumprimento de dever legal. (Rec. Crim.
n.º 1.456-PR. TRF, 1ª T., Rel. Min. Dias Trindade, j. 8.11.88. DJU 5.12.88, p.
32.075).
Com base na citada legislação especial,
praticaria em tese abuso de autoridade o agente que procede à busca e, sem
razoável motivo, atenta primeiramente contra a liberdade de locomoção do
revistado (inciso XV, do art. 5º e alínea "a", do art. 3º). Considera-se
que o procedimento impõe necessária restrição ao direito de locomoção, mormente
quando enseja a condução ao Distrito Policial a pretexto de
"averiguação", o que, nesse caso, também configuraria indevida
privação de liberdade (inciso LIV, do art. 5º da CF).
Atualmente o efetivo policial-militar
dispõe de mecanismo eficiente para verificação imediata de eventual situação
criminal do sujeito da busca, a partir dos dados de simples documento de
identidade ou mesmo de declaração verbal, utilizando-se dos denominados
sistemas inteligentes e de pesquisa on line. Portanto, o revistado
somente será conduzido do local original da busca se com ele for encontrado -
ou em sua bagagem - algum objeto de ilícito, nesse caso na condição de preso em
flagrante, ou se for verificada alguma pendência em pesquisa preliminar, tal
como um mandado de prisão a ser cumprido, ou na hipótese de se encontrar na
situação de foragido de estabelecimento prisional.
Pratica abuso de autoridade também o
agente que procede à busca pessoal atentando contra a incolumidade física do
revistado (incisos III e XLIX, do art. 5º e alínea "i", do art. 3º da
Lei 4.898/65), em razão de que o procedimento deve ser desenvolvido, em
princípio, de forma a não causar qualquer prejuízo físico em quem a ele for submetido.
Imagine-se, por exemplo, uma busca pessoal em que o agente, a pretexto de impor
respeito ao revistado, lhe atinja um golpe, ou, então, uma busca pessoal
procedida mediante auxílio de cães farejadores, incitados pelo buscador a agir
de modo agressivo contra o revistado.
Ainda, pratica abuso o agente que
realiza a busca pessoal submetendo pessoa a vexame ou a constrangimento não
autorizado em lei, indevidamente causando-lhe prejuízo moral (incisos III, X e
XLIX, do art. 5º, da CF e alíneas "b" e "h" do art. 4º da
Lei 4.898/65). O ato da busca pode provocar certa restrição à intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem, em razão da sujeição à interferência alheia
na esfera da individualidade e da tangibilidade corporal; no entanto, somente
tolerável na medida do que seja necessário e razoável, observado o estrito
cumprimento do dever legal.
Assim, por exemplo, a revista minuciosa
(em que é necessário tirar as roupas do revistado) deve ser realizada em local
reservado e somente em situações específicas que justifiquem uma maior
restrição de direitos individuais. Já a revista em mulher deve ser realizada
por outra mulher, se tal providência não importar retardamento ou prejuízo da
diligência, nos termos do art. 249, do CPP e, pelo princípio da igualdade estabelecida
entre homens e mulheres, com base no inciso I, do art. 5º, da CF, também a
revista em homem deve ser realizada por outro homem, sempre que possível.
Conhecendo os limites de imposição de
restrição, o agente público aplicará na atividade policial o conjunto de normas
que caracterizam o máximo respeito possível aos direitos individuais do cidadão
revistado. Ao mesmo tempo, não incorrerá na prática de abuso de autoridade por
excessos passíveis de responsabilização penal, cível e administrativo-disciplinar.
(*) o autor é Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo
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Notas
1.
NASSARO, Adilson Luís Franco. A busca pessoal e suas classificações. Revista A Força Policial, v. 51, 2007.
2.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução dos originais mediante versão dos Monges
de Maredsous (Bélgica). Imprimatur Carolus, Card. Archiep. Sti. Pauli,
26-XII – 1957. 52. Ed. São Paulo: Ave Maria, p. 130.
3.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga.
Tradução: Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 32.
4.
Idem.
5.
MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano.
8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
6.
ISÓCRATES, Discurso
panegíricoin Isocrate - Discours, Tome II, Texte établi et
traduit par Georges Mathieu et Émile Brémond, Les Belles Lettres, Paris,
2003, p. 53. Citação
de fragmento do texto em francês (escrito originalmente em grego), traduzido
para o português.
7.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo
penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 3. p. 34.
8.
SILVA, José Geraldo da. O inquérito policial e a polícia
judiciária. 2. ed. São Paulo: Leud. 1996. p. 31.
9.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as
idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 67 e 191.
10.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de
direito político. Tradução: Antônio de P.
Machado.São Paulo: Tecnoprint, 1995. p. 39.
11.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas.
Tradução: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 1997. p. 89.
12.
TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos
direitos humanos, in Grupo de Trabalho de Direitos Humanos.
Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade. São Paulo: Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 2000.
13.
STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A
Convenção Americana sobre direitos humanos e sua integração ao processo penal
brasileiro. São Paulo : RT, 2000. p. 23.
14.
Idem.
15.
SÃO PAULO (Estado). Procuradoria Geral do Estado. Grupo de
Trabalho de Direitos humanos. Instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos. São Paulo: Centro de Estudos da
Procuradoria Geral do Estado, 1996. p. 50.
16.
No caso da atuação policial-militar, o § 5º, do art. 144, da CF,
estabelece que: "às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a
preservação da ordem pública (...)"
17.
LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo.
2. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 205.
18.
Lei Federal nº 5. 172, de 25 de Outubro de 1966, art. 78.
19.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo da ordem
pública. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 130.
20.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo.
15. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p, 116.
21.
Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941 (CPP), art. 244:
"A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando
houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de
objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for
determinada no curso de busca domiciliar".
22.
Idem. Ob. cit., p. 12. p. 111.
23.
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da
intimidade. 2.
ed. rev. e atua. São Paulo: RT, 1995, p. 12.
24.
Idem.
25.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos
da Constituição. Coimbra:
Coimbra Editora. 1991. p. 134.
26.
GOMES, Fábio Bellote. Elementos de direito administrativo.
Barueri: Manolo. 2006. p. 42.
Fonte: http://jus.com.br/revista/texto/18314/abordagem-policial-busca-pessoal-e-direitos-humanos
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